FERNANDO MARTINS


 Fernando Martins nasceu no Porto, em 1948. Foi professor do ensino secundário, em Faro, até 2007. É autor do blogue Também de Esquerda. Em 2013, publicou o conto infanto-juvenil Em Busca da Bolinha Perdida, em formato ebook, e o livro de contos No Pó e na Bruma. Em 2015, publicou novo conjunto de narrativas ficcionais, com o título O Doce Aroma do Jasmim.
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Génesis
“Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face”
José Saramago, Caim
Usserius, bispo de Meath, arcebispo de Armagh e chanceler-mor da Sé de S. Patrício, citado por Eça de Queirós, cujas palavras reproduzo, no seu conto “Adão e Eva no Paraíso”, afirma que “Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas horas da tarde…” Julgo saber, doutra fonte, que o mesmo erudito clérigo situou a Criação no ano de 4004 antes de Cristo. Se esta última datação não me parece passível de dúvida, já em relação à primeira, pese embora a idoneidade do prelado anglicano irlandês, tenho fundadas razões para a sujeitar ao crivo de uma análise mais fina. Com efeito, o meu ilustre e, infelizmente, malogrado amigo Frei Bento da Anunciação, teólogo de renome no círculo das nossas comuns amizades e autor de copiosa bibliografia nas áreas das ciências cosmogónicas e escatológicas, publicada a expensas do próprio, tinha uma leitura, neste e noutros particulares, heterodoxa. Garantia-me o meu religioso amigo que, naquele dia, e após as trabalhosas ocupações a que entretanto se entregara – a saber: separar a luz das trevas, logo no primeiro dia, criar os Céus, no segundo, colocar Terra e Mares no seu devido lugar e promover o crescimento de plantas, no terceiro, dispor os astros no firmamento, no quarto, e povoar os ares e as águas de aves, répteis e baleias, no quinto, e vigésimo sétimo do mês de Outubro –, Deus considerou que a parte do Seu projecto ainda por concretizar, a criação do homem, era demasiado importante para lançar mãos à obra sem, ao menos, Se conceder um dia, não de descanso, o que a Sua perfeição dispensava (pese embora a lamentável e absurda referência que a Sagrada Escritura faz a tal respeito), mas de reflexão, que essa, sim, é atributo inalienável da divindade. O sexto dia foi, pois, para o Senhor, o dia da reflexão. Ora a reflexão induz geralmente decisões mais judiciosas do que aquelas que a acção irreflectida produz, e foi assim que Deus se viu confrontado com uma angustiosa (mas oh! quão produtiva) dúvida que, quase seis milénios volvidos, isto pelos cálculos do nosso estimado Usserius, pode muito bem ter contaminado o pensamento existencialista, v.g. no particular da angústia existencial. A qual dúvida enunciou nos seguintes termos, decerto imbuídos de plebeísmo e impróprios para Deus, mas cuja fidedignidade o meu amigo Frei Bento asseverava: estando Eu só, num universo que, em cinco dias, tirei do nada, qual a pressa de aqui pespegar um ser decerto repleto de qualidades, ou não fosse minha criação, mas bem menos interessante do que aqueloutro que tenho em mente criar a seguir? E foi assim que, no dia seguinte, sétimo da criação, se bem que vigésimo oitavo do mês de Outubro, Eva foi criada, na douta conclusão do meu amigo teólogo, a quem a determinação da hora do evento motivou aturado estudo, o qual produziu sérios indícios de que teria ocorrido às primeiras horas da manhã, ou não estivesse o seu Autor interessado em desfrutar ao máximo de tão prazenteira criação. E Adão teve de esperar pelo nono dia. Sim, porque o oitavo dia, o oitavo dia já nós veremos, seguindo a lição do meu saudoso Frei Bento, que destino lhe deu o Senhor [...].
(Excerto de O Doce Aroma do Jasmim, Chiado Editora, Novembro 2015, pp. 69-88)



Tentações
            Ela não o poupara durante todo o trajecto. E nem sequer se limitara às habituais observações depreciativas sobre a sua incapacidade congénita para brigar por um lugar ao sol na empresa – era inábil para se envolver na refrega pelo escalão superior; desprovido de ambição, destituído de garra, parco de inteligência, indigente em imaginação, em suma, um falhado. Agora, até a um certo desempenho íntimo se referia com acutilante e cruel rigor condenatório – era um flop, dizia. E ele, durante todo o trajecto, ouvindo aquele fluxo ininterrupto de acres acusações entremeadas de pequenas gargalhadas de escárnio, sentia-se dividido entre o sentimento crescente de inutilidade, o desejo de desaparecer e a tentação de a suprimir. Sim. Sentia alguma estranheza ao pensá-lo, mas no que realmente estava a pensar era na hipótese de lhe dar o merecido empurrão para o vazio, invertendo depois o ónus da responsabilidade
            Tinham finalmente chegado à falésia onde ela fizera questão de vir fotografar o pôr-do-sol, naquele dia do solstício de Inverno. E, enquanto ela o precedia, no seu andar meneado, alcandorada em sapatos de salto alto feitos para salões, que não para falésias, ele ia sordidamente magicando em como o acaso daquele passeio lhe oferecia, de bandeja, a oportunidade de ouro de pôr um termo a anos de sofrimento e de humilhação. O solo húmido era feito de rocha, mas nos seus interstícios e depressões um arenito pardo servia de sustento a meia dúzia de espécies vegetais anãs, bonsais de bonsais a tenderem para o infinitamente pequeno. Por todo o lado, seixos e pedaços de rochas de diferentes tamanhos, mas sempre susceptíveis de serem movidos à mão. Tinha estado uma tarde esplendorosa e o círculo solar, fulgurante, ainda que massas nebulosas começassem a adensar-se nas suas imediações, estava a escassos centímetros de ficar tangente com a linha do horizonte, na confluência do céu e do mar. Urgia por isso encontrar o lugar da falésia mais favorável à focagem, regular os dispositivos da câmara e começar a disparar logo que possível.
            Ela estava já a cerca de um metro do limite da falésia, de tal modo que podia ver, a uns vinte metros mais abaixo, a massa rochosa contra a qual o mar investia, sem o fragor das noites de tempestade, mas com uma força calma e persistente. Intrépida, voltava-se para ele, um metro mais atrás, e instava-o a dar um passo em frente, se fosse homem. Ele deixara de a ouvir; observava, no seu ecrã interior, a cena do impulso e da queda. Que decorria em câmara lenta. Com tal deleite o fazia que o filme avançava e retrocedia, sendo que, às vezes, da imagem em movimento mais ou menos lento, passava à sucessão sincopada de fotogramas – via-a a cair numa série descontínua de imagens. E sorria. Sorria para ela, que já começara a fotografar o poente, e de novo o invectivava: se fosse um homem.
            Ele deu um passo em frente. Estava agora mesmo por trás dela. Da moeda do Sol, já pouco sobrava na ranhura do horizonte. Sentiu-lhe o cheiro do champô no cabelo esvoaçante. Uma estreita língua de fogo parecia flutuar na linha do horizonte, no local onde o Sol estivera segundos antes. Ela voltou-se bruscamente. Não contava com ele ali tão perto e não pôde evitar tropeçar. Tão perto estava do limite que a queda era inevitável, não fosse a mão forte que lhe agarrou o casaco.
            Ela não o poupou no regresso. E nem sequer se limitou a acusá-lo de a não ter acompanhado na devida altura, de ter ficado a observá-la à distância e de se ter depois posto, sem aviso, a uma distância que, essa, pecava pelo excesso de proximidade. E ele, ao ouvi-la e vê-la, de dedo em riste, sentia-se dividido entre o sentimento crescente de inutilidade, o desejo de desaparecer e uma tentação ainda incipiente e difícil de enunciar.
(No Pó e na Bruma, Chiado Editora, Maio 2013, pp. 83-85)



Museu vivo dos mitos
            Ainda te lembras daquele coelho que, no princípio desta história, levou a Alice e a Júlia à sua toca, onde estava a bolinha da Xita? Pois bem, foi este mesmo coelho que, naquela tarde, andando a mordiscar a rama de umas cenouras que o avô tinha semeado, encontrou a Alice e a Júlia, que andavam a mordiscar uma pera. Não tinham voltado a ver-se, desde esse dia tão cheio de aventuras, e deram largas à alegria do reencontro. Entre beijinhos e abraços, com a Júlia a choramingar, porque os bigodes do coelho lhe tinham picado um olhinho, o amigo coelho convidou-as para uma visita inesperada: dizia ele que valia a pena ir ver o Museu Vivo dos Mitos, que ficava situado numa grande caverna para os lados dos aviários e tinha um valioso espólio (era assim mesmo que o coelho se referia ao que havia no museu, com esta palavra esquisita, que significa herança, ou seja, aquilo que nos deixam aqueles que viveram antes de nós). E logo acrescentava que, ao contrário dos museus habituais, que, como sabemos, são casas onde só se encontram objectos sem vida, neste museu as peças eram todas animadas, todas tinham vida, sendo mesmo mais do que simples peças, pois eram animais, quase todos pertencentes à espécie da Júlia e da Alice, embora de proporções bem mais pequenas. Na verdade, aqueles homens e mulheres eram de dimensão liliputiana, isto é, eram muito pequenos, caso contrário, como iriam caber naquela caverna-museu, no fundo tão semelhante à lura do coelho?
            — Animais pertencentes à nossa espécie, coelho?! Estás a chamar-me animal? — exclamou, muito zangada,  a Alice, para quem animais eram os coelhos, os patos, os ursos, os leões, etc., mas nunca ela própria, a Júlia, o Lucas ou a Beatriz.
— Calma, Alice. Nós costumamos dizer “todos diferentes, todos animais”, porque se é verdade que tu e a Júlia não sois iguais aos coelhos, também é verdade que temos muito em comum, não achas? Então, não vemos, não ouvimos, não respiramos, não comemos, não sofremos quando nos fazem mal? Estás a ver?! É verdade que, geralmente, não falamos, mas tantas vezes entendemo-nos tão bem… Olha para a Xita. Quando lhe dizes “Xita, vai buscar a bolinha”, “Xita, vamos lá fora”, “Toma, Xita”, ela não fica logo alerta, a olhar para ti e a dar ao rabinho, de contente?
            — Tens razão, tens razão —condescendeu a Alice. — Eu é que nunca tinha pensado nisso.
            — É natural, Alice. Tens muito tempo à tua frente para pensares nisso e em muitas outras coisas que nos preenchem a vida.
            Encerrado este debate em torno da natureza animal do homem, dirigiram-se os quatro – Alice, Júlia, Xita e coelho – para a caverna do museu, cuja entrada, para museu, não era lá muito grande, mas sempre era maior do que a entrada da lura do coelho. De todos, a Xita era quem mais expectativas nutria. Desta vez, estava mesmo convencida de que ia encontrar a bolinha [...].
(Excerto do e-book Em Busca da Bolinha Perdida, leyaonline, Janeiro 2013, cap. V)



Submissão, de Michel Houellebecq
              [...] Concluído este sobrevoo da narrativa, impõe-se um apanhado do que, descontada a trama romanesca, aflora como substância ideológica do romance. Deixarei de lado as ocorrências numerosas, cruas e sugestivas das cenas de sexo, bem como o medo de crescer, que, confessado, fica bem à personagem, mas não augura sobre ela nada de muito positivo, o que é confirmado pelo facto de François discutir permanentemente a situação política, reconhecer que o futuro do seu país está dependente do resultado eleitoral, mas em nenhum momento encarar sequer a hipótese de exercer o seu direito de voto. O principal leitmotiv de Submissão é mesmo o do ocaso do Ocidente, presente desde o capítulo inicial e que virá a ser complementado com o da islamização imparável da sociedade francesa e da sociedade europeia, em geral. As considerações de índole machista e a apologia do patriarcado são apenas duas das manifestações mais evidentes de uma assimilação cultural, conseguida graças à apatia e passividade dos Franceses.
Neste contexto, a referência à nacionalidade do vigilante senegalês da Sorbonne tende a conferir ao quadro demográfico francês um exotismo capaz de infundir o temor da invasão por estrangeiros, sobretudo muçulmanos e negros. Paralelamente, a relativização recorrente do valor ético e civilizacional do Ocidente cristão e do Islão tende a acentuar a ideia da progressiva aculturação do primeiro a favor do segundo, e a efabulação em torno das vitórias eleitorais sucessivas dos partidos islâmicos enfatiza a ideia da invasão da Europa.
Redigido num estilo neutro e avesso a marcas de emotividade, como se a dupla narrador/autor estivesse efectivamente rendida à hegemonia do Islão, Submissão corrobora claramente a ideia amplamente difundida no senso comum da sociedade francesa de que o país está a perder a sua identidade, a favor da cultura muçulmana, quando, na realidade, esta comunidade representa uma pequena parcela das populações dos diferentes países europeus e os autóctones islamizados não passam de uma ínfima minoria. Para quem é regularmente submetido à provação dos discursos xenófobos, Submissão não passa de um trombone desta sinistra orquestra.
Voltando à comparação com o encenador e o realizador, Houellebecq não tem necessariamente que simpatizar com a sua personagem: a oportunidade temporal, a "popularidade" do tema e a perspectiva de facturação poderão ter sido factores determinantes da escolha. Infelizmente, a sua escolha leva água a um moinho que mói os grãos da intolerância e faz parelha com a moedura da Frente Nacional.
(Excerto do texto publicado em http://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt, a 21 de Junho de 2016)

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