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Génesis
“Como te
atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces
ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar
o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face”
José Saramago, Caim
Usserius, bispo
de Meath, arcebispo de Armagh e chanceler-mor da Sé de S. Patrício, citado por
Eça de Queirós, cujas palavras reproduzo, no seu conto “Adão e Eva no Paraíso”,
afirma que “Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas
horas da tarde…” Julgo saber, doutra fonte, que o mesmo erudito clérigo
situou a Criação no ano de 4004 antes de Cristo. Se esta última datação não me
parece passível de dúvida, já em relação à primeira, pese embora a idoneidade
do prelado anglicano irlandês, tenho fundadas razões para a sujeitar ao crivo
de uma análise mais fina. Com efeito, o meu ilustre e, infelizmente, malogrado
amigo Frei Bento da Anunciação, teólogo de renome no círculo das nossas comuns
amizades e autor de copiosa bibliografia nas áreas das ciências cosmogónicas e
escatológicas, publicada a expensas do próprio, tinha uma leitura, neste e
noutros particulares, heterodoxa. Garantia-me o meu religioso amigo que,
naquele dia, e após as trabalhosas ocupações a que entretanto se entregara – a
saber: separar a luz das trevas, logo no primeiro dia, criar os Céus, no
segundo, colocar Terra e Mares no seu devido lugar e promover o crescimento de
plantas, no terceiro, dispor os astros no firmamento, no quarto, e povoar os
ares e as águas de aves, répteis e baleias, no quinto, e vigésimo sétimo do mês
de Outubro –, Deus considerou que a parte do Seu projecto ainda por
concretizar, a criação do homem, era demasiado importante para lançar mãos à
obra sem, ao menos, Se conceder um dia, não de descanso, o que a Sua perfeição
dispensava (pese embora a lamentável e absurda referência que a Sagrada
Escritura faz a tal respeito), mas de reflexão, que essa, sim, é atributo
inalienável da divindade. O sexto dia foi, pois, para o Senhor, o dia da
reflexão. Ora a reflexão induz geralmente decisões mais judiciosas do que
aquelas que a acção irreflectida produz, e foi assim que Deus se viu
confrontado com uma angustiosa (mas oh! quão produtiva) dúvida que, quase seis
milénios volvidos, isto pelos cálculos do nosso estimado Usserius, pode muito
bem ter contaminado o pensamento existencialista, v.g. no particular da
angústia existencial. A qual dúvida enunciou nos seguintes termos, decerto
imbuídos de plebeísmo e impróprios para Deus, mas cuja fidedignidade o meu
amigo Frei Bento asseverava: estando Eu só, num universo que, em cinco dias,
tirei do nada, qual a pressa de aqui pespegar um ser decerto repleto de
qualidades, ou não fosse minha criação, mas bem menos interessante do que
aqueloutro que tenho em mente criar a seguir? E foi assim que, no dia seguinte,
sétimo da criação, se bem que vigésimo oitavo do mês de Outubro, Eva foi
criada, na douta conclusão do meu amigo teólogo, a quem a determinação da hora
do evento motivou aturado estudo, o qual produziu sérios indícios de que teria
ocorrido às primeiras horas da manhã, ou não estivesse o seu Autor interessado
em desfrutar ao máximo de tão prazenteira criação. E Adão teve de esperar pelo
nono dia. Sim, porque o oitavo dia, o oitavo dia já nós veremos, seguindo a
lição do meu saudoso Frei Bento, que destino lhe deu o Senhor [...].
Tentações
Ela não o poupara durante todo o
trajecto. E nem sequer se limitara às habituais observações depreciativas sobre
a sua incapacidade congénita para brigar por um lugar ao sol na empresa – era
inábil para se envolver na refrega pelo escalão superior; desprovido de
ambição, destituído de garra, parco de inteligência, indigente em imaginação,
em suma, um falhado. Agora, até a um certo desempenho íntimo se referia com
acutilante e cruel rigor condenatório – era um flop, dizia. E ele, durante todo o trajecto, ouvindo aquele fluxo
ininterrupto de acres acusações entremeadas de pequenas gargalhadas de
escárnio, sentia-se dividido entre o sentimento crescente de inutilidade, o
desejo de desaparecer e a tentação de a suprimir. Sim. Sentia alguma estranheza
ao pensá-lo, mas no que realmente estava a pensar era na hipótese de lhe dar o
merecido empurrão para o vazio, invertendo depois o ónus da responsabilidade
Tinham finalmente chegado à falésia
onde ela fizera questão de vir fotografar o pôr-do-sol, naquele dia do
solstício de Inverno. E, enquanto ela o precedia, no seu andar meneado,
alcandorada em sapatos de salto alto feitos para salões, que não para falésias,
ele ia sordidamente magicando em como o acaso daquele passeio lhe oferecia, de
bandeja, a oportunidade de ouro de pôr um termo a anos de sofrimento e de
humilhação. O solo húmido era feito de rocha, mas nos seus interstícios e
depressões um arenito pardo servia de sustento a meia dúzia de espécies vegetais
anãs, bonsais de bonsais a tenderem para o infinitamente pequeno. Por todo o
lado, seixos e pedaços de rochas de diferentes tamanhos, mas sempre
susceptíveis de serem movidos à mão. Tinha estado uma tarde esplendorosa e o
círculo solar, fulgurante, ainda que massas nebulosas começassem a adensar-se
nas suas imediações, estava a escassos centímetros de ficar tangente com a
linha do horizonte, na confluência do céu e do mar. Urgia por isso encontrar o
lugar da falésia mais favorável à focagem, regular os dispositivos da câmara e
começar a disparar logo que possível.
Ela estava já a cerca de um metro do
limite da falésia, de tal modo que podia ver, a uns vinte metros mais abaixo, a
massa rochosa contra a qual o mar investia, sem o fragor das noites de tempestade,
mas com uma força calma e persistente. Intrépida, voltava-se para ele, um metro
mais atrás, e instava-o a dar um passo em frente, se fosse homem. Ele deixara
de a ouvir; observava, no seu ecrã interior, a cena do impulso e da queda. Que
decorria em câmara lenta. Com tal deleite o fazia que o filme avançava e
retrocedia, sendo que, às vezes, da imagem em movimento mais ou menos lento,
passava à sucessão sincopada de fotogramas – via-a a cair numa série
descontínua de imagens. E sorria. Sorria para ela, que já começara a fotografar
o poente, e de novo o invectivava: se fosse um homem.
Ele deu um passo em frente. Estava
agora mesmo por trás dela. Da moeda do Sol, já pouco sobrava na ranhura do
horizonte. Sentiu-lhe o cheiro do champô no cabelo esvoaçante. Uma estreita
língua de fogo parecia flutuar na linha do horizonte, no local onde o Sol
estivera segundos antes. Ela voltou-se bruscamente. Não contava com ele ali tão
perto e não pôde evitar tropeçar. Tão perto estava do limite que a queda era inevitável,
não fosse a mão forte que lhe agarrou o casaco.
Ela não o poupou no regresso. E nem
sequer se limitou a acusá-lo de a não ter acompanhado na devida altura, de ter
ficado a observá-la à distância e de se ter depois posto, sem aviso, a uma
distância que, essa, pecava pelo excesso de proximidade. E ele, ao ouvi-la e
vê-la, de dedo em riste, sentia-se dividido entre o sentimento crescente de
inutilidade, o desejo de desaparecer e uma tentação ainda incipiente e difícil
de enunciar.
Museu vivo dos mitos
Ainda te lembras daquele coelho que, no princípio desta
história, levou a Alice e a Júlia à sua toca, onde estava a bolinha da Xita?
Pois bem, foi este mesmo coelho que, naquela tarde, andando a mordiscar a rama
de umas cenouras que o avô tinha semeado, encontrou a Alice e a Júlia, que
andavam a mordiscar uma pera. Não tinham voltado a ver-se, desde esse dia tão
cheio de aventuras, e deram largas à alegria do reencontro. Entre beijinhos e
abraços, com a Júlia a choramingar, porque os bigodes do coelho lhe tinham
picado um olhinho, o amigo coelho convidou-as para uma visita inesperada: dizia
ele que valia a pena ir ver o Museu Vivo dos Mitos, que ficava situado numa
grande caverna para os lados dos aviários e tinha um valioso espólio (era assim
mesmo que o coelho se referia ao que havia no museu, com esta palavra
esquisita, que significa herança, ou seja, aquilo que nos deixam aqueles que
viveram antes de nós). E logo acrescentava que, ao contrário dos museus
habituais, que, como sabemos, são casas onde só se encontram objectos sem vida,
neste museu as peças eram todas animadas, todas tinham vida, sendo mesmo mais
do que simples peças, pois eram animais, quase todos pertencentes à espécie da
Júlia e da Alice, embora de proporções bem mais pequenas. Na verdade, aqueles
homens e mulheres eram de dimensão liliputiana, isto é, eram muito pequenos,
caso contrário, como iriam caber naquela caverna-museu, no fundo tão semelhante
à lura do coelho?
— Animais pertencentes à nossa espécie, coelho?! Estás a
chamar-me animal? — exclamou, muito zangada,
a Alice, para quem animais eram os coelhos, os patos, os ursos, os
leões, etc., mas nunca ela própria, a Júlia, o Lucas ou a Beatriz.
—
Calma, Alice. Nós costumamos dizer “todos diferentes, todos animais”, porque se
é verdade que tu e a Júlia não sois iguais aos coelhos, também é verdade que
temos muito em comum, não achas? Então, não vemos, não ouvimos, não respiramos,
não comemos, não sofremos quando nos fazem mal? Estás a ver?! É verdade que,
geralmente, não falamos, mas tantas vezes entendemo-nos tão bem… Olha para a
Xita. Quando lhe dizes “Xita, vai buscar a bolinha”, “Xita, vamos lá fora”,
“Toma, Xita”, ela não fica logo alerta, a olhar para ti e a dar ao rabinho, de
contente?
— Tens razão, tens razão —condescendeu a Alice. — Eu é
que nunca tinha pensado nisso.
— É natural, Alice. Tens muito tempo à tua frente para
pensares nisso e em muitas outras coisas que nos preenchem a vida.
Encerrado este debate em torno da natureza animal do
homem, dirigiram-se os quatro – Alice, Júlia, Xita e coelho – para a caverna do
museu, cuja entrada, para museu, não era lá muito grande, mas sempre era maior
do que a entrada da lura do coelho. De todos, a Xita era quem mais expectativas
nutria. Desta vez, estava mesmo convencida de que ia encontrar a bolinha [...].
Submissão, de Michel Houellebecq
[...] Concluído este sobrevoo da narrativa,
impõe-se um apanhado do que, descontada a trama romanesca, aflora como
substância ideológica do romance. Deixarei de lado as ocorrências numerosas,
cruas e sugestivas das cenas de sexo, bem como o medo de crescer, que,
confessado, fica bem à personagem, mas não augura sobre ela nada de muito
positivo, o que é confirmado pelo facto de François discutir permanentemente a
situação política, reconhecer que o futuro do seu país está dependente do
resultado eleitoral, mas em nenhum momento encarar sequer a hipótese de exercer
o seu direito de voto. O principal leitmotiv de Submissão é mesmo o do
ocaso do Ocidente, presente desde o capítulo inicial e que virá a ser
complementado com o da islamização imparável da sociedade francesa e da
sociedade europeia, em geral. As considerações de índole machista e a apologia
do patriarcado são apenas duas das manifestações mais evidentes de uma
assimilação cultural, conseguida graças à apatia e passividade dos Franceses.
Neste contexto, a referência à nacionalidade do vigilante senegalês da
Sorbonne tende a conferir ao quadro demográfico francês um exotismo capaz de
infundir o temor da invasão por estrangeiros, sobretudo muçulmanos e negros.
Paralelamente, a relativização recorrente do valor ético e civilizacional do
Ocidente cristão e do Islão tende a acentuar a ideia da progressiva aculturação
do primeiro a favor do segundo, e a efabulação em torno das vitórias eleitorais
sucessivas dos partidos islâmicos enfatiza a ideia da invasão da Europa.
Redigido num estilo neutro e avesso a marcas de emotividade, como se a
dupla narrador/autor estivesse efectivamente rendida à hegemonia do Islão, Submissão
corrobora claramente a ideia amplamente difundida no senso comum da sociedade
francesa de que o país está a perder a sua identidade, a favor da cultura
muçulmana, quando, na realidade, esta comunidade representa uma pequena parcela
das populações dos diferentes países europeus e os autóctones islamizados não
passam de uma ínfima minoria. Para quem é regularmente submetido à provação dos
discursos xenófobos, Submissão não passa de um trombone desta sinistra
orquestra.
Voltando à comparação
com o encenador e o realizador, Houellebecq não tem necessariamente que
simpatizar com a sua personagem: a oportunidade temporal, a
"popularidade" do tema e a perspectiva de facturação poderão ter sido
factores determinantes da escolha. Infelizmente, a sua escolha leva água a um
moinho que mói os grãos da intolerância e faz parelha com a moedura da Frente
Nacional.
(Excerto do texto
publicado em http://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt, a 21 de Junho de 2016)
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